terça-feira, 8 de janeiro de 2008

AONDE LEVAM MINHAS SOLAS

Local: Ercília
Localidade: Cambiante

Maio de 1987. Três meses de busca ainda sem resultado. Estávamos fracos. Quase que sem suprimentos e muito, muito abatidos. Alguns membros de nossa equipe já haviam abortado a missão ainda na primeira mesada de ofício. Entre eles o nosso escrivão, tradutor e amigo Diogo Mainardi. Talvez esta, a maior de nossas perdas ao longo do trajeto. Restaram-nos nove. Já havíamos percorrido a pé, parte da região noroeste de todo continente. Estávamos perto. O calor dilatava as partículas de cada farelo de areia no solo, sustendando uma nota em timbre hipnótico que, somada ao fervor do apoucado soprar do vento ao ouvido, embriagavam-nos em mantra, um tanto desconfortável. Ainda porque nenhum dos infantes ousava se quer um esboço de fala ou barulho. E assim seguimos por horas. Foi quando o vazio de minha retina preencheu-se com o cromatismo desbotado do que restara de toda a expedição. Milhares de fios pretos. Brancos. Pretos e brancos. E cinzas, se entrelaçavam formando a mais bela ruína pelo homem presenciada. Fios estes, que atados aos respectivos sustentáculos, denunciavam a genealogia de toda uma geração à seu tempo. Segundo o historiador italiano Ítalo Calvino em seu livro "Le Città Invisibili"*, os habitantes de Ercília, estendiam os fios entre as arestas de suas casas, de acordo com as relações de parentesco, troca, autoridade e representação social. Quando estes fios eram tantos, a ponto de impedir o trânsito local, os habitantes abandonavam a cidade. As casas eram desmontadas, restando apenas as linhas monocromáticas e seus pedestais, cujo simbolismo caótico refletia em nossa percepção, tal como um fóssil artístico proposital ou mesmo a necessidade de afirmação passageira de uma geração, a descoberta de nossas raízes. Ali mornava a memória de um povo em eterna transição. Diferente de nossa romaria que chegara ao fim. Perguntei-me por praxe, se havia valido a pena, fingindo não saber a resposta.
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*La Città Invisibili (Ítalo Calvino, Turim,1972; As Cidades Invisíveis, trad. Diogo Maniardi, São Paulo, 1990)

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