sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

VAIDADE VISCERAL

Não deveria eu descrever-lhes de modo tão fiel, o mórbido e fétido local em que eu e meus homens estaríamos fadados à padecer durante os últimos meses, se não de maneira tão esboçada. Estávamos sim, rodeados por uma inexpugnável selva nativa, porém esta estéril o bastante para sediar qualquer tipo de pesquisa ou expedição de caráter biológico. Os corpos se amontoavam ao redor de nossos leitos. Ora sozinhos ou em pares, ora aos montes, empilhados. Confesso tardar minha comodidade perante o fato, e caminhar por entre mulheres e crianças que se decompunham ao ar livre só fazia senão aumentar a distância entre eu e a realidade. A individualidade ali nada era. Chegavam em grupos e em grupos partiam. Não imaginam o quão duro era pra nós reconhecer nos ávidos olhos de uma criança quase morta pela difteria, a vontade de não sucumbir à partida. Ou mesmo mulheres que, desprovidas de força, se afogavam no próprio vômito enquanto os maridos tossiam até o desmaio. Os corpos nus formavam obscenas pilhas por entre as quais passeavam famigerados cães na busca de alguma sobra ensopada no frescor da morte, que ali se fazia presente. Ainda tentávamos a higiene pessoal. Em podre água banhavam-se as grávidas, precedendo os idosos e as crianças mais novas. O pouco alimento era mal divido. Não tardou, um monomotor da cruz vermelha portuguesa sobrevoou a região. Foram então despejadas caixas que supúnhamos ser de mantimentos vitais às nossas condições. Entretanto, ao abrirmos os caixotes ofertados, deparamo-nos com a infeliz surpreza que calou até o pranto dos devalidos. As caixas estavam carregadas de batons femininos, todos de rubro tom.

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